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domingo, 26 de junho de 2011

Discussão sobre a Arte coreográfica, a composição e restauração em Dança contemporânea. Exemplo coreográfico : “Autour du vide : immédiatement présent!”


Trata-se da discussão sobre a composição coreográfica de minha autoria com a colaboração, na pesquisa de movimentos, do grupo de pesquisa composto pelas alunas da graduação em Arte coreográfica da Universidade de Paris 8 em 2009, sob minha orientação. Neste trabalho investigo o espaço  tendo como obra de referência a Exposition du  Vide (Exposição do Vazio), proposto pelo artista plástico Yves Klein em 1958, publicado na galeria Iris Clert, Paris e reeditado no Centro George Pompidou, Paris 2009. Propomos então discutir além do tema escolhido para a pesquisa, a restauração da obra. Brandi  considera que a restauração deve manter sua estrutura, e projetar para a atuação prática da atualidade. Tem como fundamentação teórica Maine de Biran, Cesare Brandi, Demeulenaere, Dewey, Yves Klein.



A pessoa é um entrelaçamento do envelope corporal e suas experiências sociais. E  dessa teia resultam seus investimentos mais sensíveis como também as representações mais elaboradas. Disso desdobram-se suas inspirações, seus sentimentos e pensamentos. Sendo assim, a pessoa ocupa um espaço singular, tem uma maneira única de se apresentar  no mundo. A pessoa é portanto uma massa contendo uma forma plástica, que ocupa um espaço, e move toda uma massa não visível em volta de si.
O corpo se mantém constantemente em movimento. Eles podem ser voluntários ou  involuntários. A maior parte dos movimentos voluntários se conclui em uma ação funcional, isso quer dizer, ações que têm sempre um objetivo preciso. Os involuntários são aqueles inerentes à sobrevivência. Muitas das ações funcionais são diretamente ligadas à um outro objeto como pegar um copo, ler um livro, escutar uma música. E existem movimentos funcionais que não estão ligados à um objeto, como correr, andar, sentar, etc. O que essas duas formas de ação têm em comum é que existe um objetivo a ser alcançado que leva a pessoa a se mover. É a pessoa, ela mesma, quem toma a decisão em uma determinada ação. Ela não age sob o comando de um entidade externa à si. Os corpos-instrumentos seriam como marionetes. É preciso alguém que aciona e controla uma sequência de movimentos, pois que o corpo-marionete não tem jamais autonomia de ação corporal. (...) Eu considero que o corpo que pensa é o mesmo que determina as ações. Não existe intervalo entre pensamento e ação. A pessoa pensa e age; o que eu penso é intrínseco ao que sou.[1] A pessoa sabe como agir para evitar danos corporais e também como poupar energia nos seus movimentos. No momento de agir, ninguém para para refletir sobre a melhor maneira de pegar um objeto que caiu no chão. Ela simplesmente age sem se questionar onde e como colocar os pés, como alinhar as pernas, a cintura pélvica, ou ainda, qual movimento demanda menos energia, ou qual é mais eficaz e demanda menos esforço. O movimento se apresenta simplesmente da melhor forma possível para que a pessoa não se machuque. Esses movimentos nascem da necessidade de completar uma ação, ou seja, com uma finalidade a ser concluída.
Por outro lado, encontramos na expressão em dança, os movimentos poéticos. Aristóteles[2] comenta que a linguagem poética é antes de tudo concebida como transgressão da norma da linguagem do cotidiano; o poeta deve se distanciar da banalidade do uso corrente[3] para surpreender o leitor e sobretudo provocar o surgimento da beleza[4]. De onde surge a importância acordada à metáfora. Desta maneira, na Arte Coreográfica, os dançarinos se utilizam dos movimentos do cotidiano ou banais, mas de maneira metafórica afim de recriar os movimentos à partir da experiência pessoal de cada um. Assim, a expressão poética não demanda uma cópia tal qual o mundo real, mas a expressão da percepção do mundo apreendido.
Isso porque a arte de um modo geral não tem a intenção de significar, assim como não tem funcionalidade. Não dançamos para transmitir algo preciso, pois a dança não tem a objetividade da comunicação da linguagem verbal. Para José Gil[5]: O gesto dançado, a menos que tenha sido concebido(codificado) para apresentar certa significação precisa, não quer dizer um sentido que a linguagem articulada poderia traduzir de maneira fiel e exaustiva. O gesto é gratuito, transporta e guarda para si o mistério do seu sentido e da sua fruição.
Isso quer dizer que quando me sirvo da linguagem falada e me refiro à fruta laranja, o sentido da palavra laranja me remete à sensação do sabor da fruta e eu identifico nessa palavra a forma, a cor e o sabor da laranja. Já quando eu me expresso através da dança, busco exprimir uma maneira de sentir, e não um sentimento particular. Os gestos são abstratos e os sentidos comportam um horizonte infinito que não se esgota através da tradução em palavras. O que eu quero dizer é que na dança não se pretende exprimir afetos categoriais, ou seja, aqueles que têm um significado intrínseco; o gesto dançado não exprime um signo previamente codificado e não acrescenta significação ao sentido. Gil[6] considera que o que caracteriza o gesto dançado é:  [...]o fato de ele nunca ir até o final de si próprio. [Acrescenta] No movimento que se desdobra, retém-se, regressa sobre si mesmo e prolonga-se no gesto seguinte. Neste sentido não tem contorno, tem apenas um enredor, esquiva-se aos seus próprios limites, escapa a si próprio.
Dançar não é o mesmo que somente movimentar o corpo. Quando alguém dança em uma boate, por exemplo, a pessoa se move segundo o ritmo imposto por uma música. Normalmente, quando estão se movendo, as pessoas não têm sequer consciência das qualidades de seus movimentos, dos músculos e articulações que estão em jogo. Pode acontecer da pessoa repetir os mesmos movimentos durante toda a noite sem perceber o que realmente está fazendo. Neste caso, trata-se de movimentos mecanizados e não da dança que conhecemos como tal. É importante sublinhar que a dança comporta diferentes manifestações como as danças sociais das boates e das festas, as danças tradicionais de uma determinada cultura, as danças sagradas e rituais para reverenciar as divindades. Sendo assim, as funções de entreter, celebrar, cultuar e preservar tradições dessas danças (sociais, tradicionais, sagradas) as distinguem da expressão artística, ou seja da Arte Coreográfica. Mas existe uma tendência a denominar dança, tudo o que se refere aos movimentos corporais, como se pudéssemos denominar musica, todos os sons, inclusive às buzinas de carro no trânsito.
A arte coreográfica é uma maneira de organizar os movimentos e estes, por sua vez, nascem do desejo de expressão. Assim, existe uma maneira de dar forma ao movimento, afim de engendrar uma sequência coerente num tempo e espaço organizado.

 “(...) é preciso sublinhar que eu considero a noção de forma como propõe Pierre Demeulenaere[7], aquela que é plástica, maleável que se adapta ao ambiente. Isto difere da idéia e forma que resulta, por exemplo, de aparência esperada por comportamentos que são mais delimitados e imóveis, como uma forma dada a um bolo que é cozido dentro de uma forma. Não ha plasticidade nesta forma, a não ser que eu decida cortar e redefinir a forma desse bolo, mas ele se tornara ainda uma forma precisa e imutável. Neste caso, a forma é uma definição precisa de alguma coisa que é feita dentro de uma moldagem. Para modificá-la é preciso uma ação direta e externa sobre a coisa. No entanto a forma proposta por Demeulenaere permite a plasticidade segundo os afetos.”[8]

As técnicas corporais que se aplicam para desenvolver a dança contemporânea, contribuem para a acuidade do movimento e são baseadas na espontaneidade corporal: a dançarina tem propriedade de seus movimentos, mas aprende a agir de maneira espontânea e consciente, no momento da pesquisa de movimentos corporais para a composição coreográfica. Através da Arte Coreográfica, os movimentos corporais desvelam e metamorfizam os efeitos da passagem do tempo sobre o ser humano, para reconstruir uma estrutura afim de expressá-la.
Como comentei acima, o gesto dançado se diferencia do gesto funcional, que é aquele que a pessoa executa com um fim, por exemplo mover-se para pegar um objeto. No entanto, a exemplo de Duchamps em Fontaine (1917/1964),  que transforma um objeto ordinário em obra de arte, nada impede também que na Arte Coreográfica nos utilizemos dos gestos funcionais com o objetivo de transformá-los em expressões artísticas. Marcel Duchamps pegou um artigo ordinário da vida cotidiana, e o colocou de maneira que sua significação de uso desaparecesse por meio do seu novo titulo e ponto de vista. Ele possibilitou a criação de um novo pensamento para esse objeto.
Desta maneira, a dança pode ser composta também por gestos funcionais, mas de uma forma metafórica como considera Aristóteles. Recriando também os movimentos a partir do que a pessoa vivenciou através de sua percepção do mundo e do seu conhecimento sensível. Neste caso a imitação, como propõe o mesmo autor, não é uma cópia tal qual o mundo real, mas uma interpretação a partir do mundo percebido.
Na dança os movimentos nascem a partir do desejo de expressão. O corpo dançante remodela o mundo segundo o que ele apreende através do seu conhecimento sensível. Para Aristóteles (2008) a metáfora participa estreitamente desta recriação do real sensível: a forma como fundo contribui para fazer da poesia um meio de apreender o mundo, global e totalizante.
Vamos pensar então que os movimentos dançados podem ser considerados  movimentos poéticos. A/O dançarina/no é poeta e poesia ao mesmo tempo. Segundo Aristóteles(2008), a língua poética é antes de tudo concebida como transgressão da norma da linguagem; o poeta deve afastar-se da banalidade do cotidiano para surpreender o leitor. Daí a importância dada à metáfora.
O corpo dançante remodela o mundo, tal qual ele se apresenta para a pessoa, por meio do conhecimento que ele adquire pelos afetos trocados com o ambiente. Segundo as plumas de Aristóteles[9], a metáfora participa estreitamente na re-criação do real sensível. Eu considero que isto se aplica à dança. Os dançarinos não transpõem diretamente os movimentos apreendidos do meio ambiente, porque ele faz como o poeta, posso dizer que o dançarino é o poeta do movimento. Representar os modelos vistos no mundo seria a pantomima e não Arte Coreográfica. De fato, os dançarinos transpõem os movimentos banais por meio da metáfora e os transformam em poesia.
Cada dançarino se expressa de maneira única. Cada um exprime a mesma coisa, porque as pessoas que coabitam em um mesmo lugar compartilham a mesma paisagem, mas de uma maneira diferente. Com a ressalva de que os afetos que cada um troca com o seu meio é particular e intimo, as expressões não podem então, serem as mesmas para todo mundo.
Para a composição coreográfica em Dança Contemporânea, cada dançarino deve ir de encontro às sensações que ele tem ao entrar em contato com a coisa, e expressar essa sensação de forma poética, como bem coloca Lenora Lobo[10]. 
Existem coisas que permanecem na carne como cicatrizes e outras que são evanescentes. Mas todas elas participam na formação do Ego[11], ou seja, na formação da pessoa. O fato de experimentar pessoalmente alguma coisa, é fundamental para decidir a maneira de se exprimir.
O olhar dirigido em atenção à um objeto determinado, engendra lembranças que participam da memória da pessoa de maneira específica, compreendido que os rastros que permanecem nas entranhas, são sui generis para cada pessoa. Podemos criar belas e diferentes metáforas à partir de um estimulo comum à todos.
A relação de afeto do meio com a pessoa se desvela corporalmente. Por exemplo: as técnicas rígidas estavam em acordo com um tempo onde a sociedade controlava o comportamento das mulheres por meio de um corset. O corpo refletia a imagem de ordenação social. Neste tempo, já longínquo, a dança impunha restrições corporais para as mulheres. Desta forma, o corpo dançante exprime o que corresponde à realidade contemporânea. O dançarino conta história sem necessitar recorrer à sistemas de interpretação e copiar os movimentos cotidianos. Nietzsche[12] comenta que para o verdadeiro poeta, a metáfora não é uma figura retórica, mas uma imagem substitutiva que ele percebe no lugar da ideia. Isto quer dizer que em suas criações o dançarino, recorre ao mundo do cotidiano vivido segundo o que ele conhece por meio de seus sentidos.
O dançarino se expressa de uma maneira tal que o público vive segundo seus afetos, pois que a Arte coreográfica se apresenta de forma poética, sem ter a preocupação de explicar o que está sendo expresso pelos dançarinos. Esta forma poética é construída à partir da pesquisa de um caminho diferente ao que a pessoa é habituada percorrer no momento da execução de seus movimentos cotidianos. Logo que a pessoa ultrapassa os movimentos habituais, ela acede a novas possibilidades expressivas.
O corpo compõe, decompõe e recompõe movimentos, mas não é suficiente ter uma boa técnica, pois é necessário ir além dela. É preciso sublinhar que eu trato a técnica, como meio para a liberdade de expressão e não formatação.  Ela serve como base e o dançarino deve saber se servir dela para exprimir-se poeticamente. É preciso desenvolver uma sensibilidade que permita a pessoa olhar e ver nas nuvens, além da água cristalizada e condensada; perceber as imagens que se formam ao sabor do vento que lhes faz deslocar na imensidão do céu. É preciso saber deixar-se transportar pelos sonhos e, sobretudo, saber exprimir suas percepções como um poeta.
Vou aqui falar a respeito do trabalho que desenvolvi com um grupo de alunas da graduação em dança da Universidade Paris 8, em Paris. Depois de uma formação que envolvia: 1) iniciação à anatomia e à biomecânica, para trabalhar a educação somática; 2) qualidade e expressividade da corporeidade; 3) Composição coreográfica; 4) publicação da composição.
Dentre as três dançarinas que optaram pela publicação coreográfica, uma tinha  formação em dança clássica, outra havia feito sua formação por meio de vários workshops, e a terceira havia feito dança clássica na infância, o que afetava fortemente seus movimentos. Estas três pessoas tinham assim, um percurso completamente distintos no que tange à dança, sem considerar suas diferentes experiências e diferentes etnias: uma francesa, uma búlgara e uma chilena criada em Paris desde os dois anos de idade.
Para esta composição coreográfica, eu propus pesquisarmos a obra “Vide”de Yves Klein[13]. É importante sublinhar que eu não levei em consideração a pesquisa que o artista fez na filosofia budista. No meu trabalho eu não propus nenhuma questão religiosa. A pesquisa para a composição coreográfica foi feita a partir da obra exposta por Yves Klein sobre o vazio, o que nós vimos e experimentamos através nossa própria percepção da exposição « Vide, une rétrospective[14]». Nós fomos em busca de todo o material sobre a obra, livros, vídeos, etc. Discutimos muito sobre o vazio, em numerosas situações, sobretudo do vazio no espaço, espaço corporal, espaço que contorna o corpo. Surgiram questionamentos  diversos : O que seria o vazio no movimento corporal?; Teria vazio na interioridade corporal?; Tem alguma coisa que é vazia ou o vazio é alguma coisa que a vista não é capaz de ver?
A noção do vazio é proposta como o desequilíbrio nas concepções das artes marciais. Na dança, eu não sei onde é o lugar do vazio, talvez na pausa, ou quando o movimento ainda não existe visivelmente? Quando ele ainda não foi expresso?  Para mim, o vazio é qualquer coisa que eu conheci e ao qual eu não posso mais aceder. O movimento é evanescente, ele existe  um momento, quando ele está presente. Através dos meus sentidos eu sigo os traços que compõem os movimentos. Uma vez executado, ficam os rastros na memória. Sobra o vazio do movimento que teve lugar em alguma parte. Mas o que pode ser o vazio da interioridade corporal? Talvez as coisas que não são vistas. Em todo caso, mesmo que eu não veja meus órgãos, eles estão lá envolvidos pelos ossos e músculos, eu os sinto mesmo que não os enxergue. Não posso, então, concluir que o vazio é algo que eu não veja. Como poderia exprimir o que eu compreendo como vazio corporal? O vazio seria a falta? Como posso dançar o vazio ?
Percebe-se então que o vazio é relativo. Uma parte, como todo vazio, é cheio do que cada um pode ou sabe preencher, na outra parte, e sobretudo, o vazio é aberto à criação.  Este contraste entre o cheio e o vazio, dá mais relevância à presença da ausência do conteúdo da parte vazia. Um copo vazio é sempre cheio de coisas invisíveis. Segundo Proust[15], o ambiente supostamente vazio, guarda sempre em si, uma memoria invisível das coisas que lá existiram.
Por conseguinte, cada uma das dançarinas debruçou-se sobre a pesquisa do que o vazio representava para elas.  Propomo-nos a experimentar diferentes abordagens sobre o vazio. A experiência de se deixar submergir no vazio é bastante importante para o processo da pesquisa corporal na composição coreográfica. Tratando-se de uma arte tão carnal como a Arte Coreográfica, para se ter um bom resultado na expressão, faz-se necessário passar pela experiência, ela mesma. É importante sentir na carne para melhor se exprimir. Sem esta vivência, o movimento resta como forma sem conteúdo.
Nos momentos de minhas experiências na exposição « vide, une rétrospective », eu tive a vontade de ocupar o estaço. Seja o espaço da sala, seja o espaço vazio das paredes. Tive vontade de compor quadros, ilustrados por movimentos dançando nos muros brancos. De fato, os muros brancos, as salas vazias, recheadas de espaço livre, me incitaram a mover, afim de ocupar o espaço e de vir a ser eu mesma, formas para compor com os muros brancos, como sendo os quadros que ali estavam faltando.
As três dançarinas também tiveram suas experiências nas salas de exposição sobre o “Vazio”. Após discutir exaustivamente sobre o vazio, eu propus cinco questões, referentes ao tema para instigar a pesquisa de movimentos corporais, foram elas: 1) O que é o vazio?;  2) O que é o vazio na interioridade corporal? Significa a mesma coisa dizer: o espaço na interioridade corporal no lugar do vazio na interioridade corporal?; 3) Tem um espaço vazio entre eu e e o objeto que eu trabalho?; 4) Existe um vazio entre eu e os outros?; 5) Como posso eu trabalhar sem preencher o vazio entre eu  e o outro?
Estas questões foram colocadas para cada dançarina. Após discutirmos a primeira, eu pedi que desenhassem alguma coisa que pudesse exprimir sobre o espaço vazio de uma folha em branco Outras vezes elas escreviam e ainda em outras, simplesmente dançavam. Depois partimos para a pesquisa e seleção de movimentos apresentados, criando em seguida, uma sequência de movimentos em uma determinada direção, ocupando um determinado espaço, executado num determinado tempo. Vale sublinhar que a discussão era extensa para cada questão apresentada, só passávamos para a próxima depois de esgotarmos as possibilidades do trabalho proposto. Certas questões necessitavam mais de um encontro para exaurir-se. Apenas passávamos para a próxima após cada dançarina ter composto sua sequência de movimentos.
À medida que se desenvolvia a pesquisa corporal referente às questões propostas, ficava mais evidente a diferença de movimento, conferida na singularidade de cada  dançarina. De fato, cada pessoa percebe o mudo de maneira diferente e traz em si as marcas de suas experiências. Merleau-Ponty[16] comenta que no mesmo instante em que eu considero compartilhar a vida do  outro, o nosso ponto de encontro se dá na exterioridade, como por exemplo, através de uma música, de uma paisagem que compartilhamos. E são estas coisas, elas mesmas, que me abrem o acesso do mundo privado do outro. No entanto, a intervenção do outro não soluciona o paradoxo interno da minha percepção, ela expande a minha vida mais secreta até o outro. É bem verdade que “os mundos privados” se tangem, fundem-se.  Apesar desse contato  entre a esfera privada de cada um e seu entorno, a maneira de perceber o mundo e o jeito de se exprimir será sempre singular.
As três dançarinas trabalharam cada uma em suas pesquisas de movimentos, os quais para elas eram pertinentes às questões, e eu as ajudava na seleção desses movimentos. Depois, com esse material selecionado, seguimos para o momento da composição coreográfica. Importante remarcar que o material que as dançarinas produziram, funciona como uma espécie de rascunho o qual o coreógrafo utiliza para compor um quadro. Eu comparo o coreógrafo a alguém que propõe pigmentos e que incita o outro a criar cores com esses pigmentos. Na sequência, ele recupera as cores criadas e compõe um quadro. As cores são sempre habitantes no espaço, é necessário criar e recriar, na intensidade do vazio sobre os rastros dos movimentos, que são sempre evanescente. A experiencia corporal é sinal que pode aparecer no mundo esta enigmática presença tão fugitiva quanto a sombra. Esse é o trabalho do compositor coreográfico. O momento da composição faz parte de um outro momento de criação, é um processo laborioso.
A Arte Coreográfica é apresentada por uma pessoa e o corpo é ele mesmo carne, matéria visível e palpável. A dança é também matéria, visível, embora fugaz. Normalmente, o movimento aparece e desaparece no tempo, pois que o tempo escoa. Existe uma dimensão escondida  das formas apresentadas que as pessoas não veem realmente. O que se consegue captar são os rastros do movimento que ficam entranhados na carne de quem vê. Quando dançamos, deixamos rastros de movimentos, mas o movimento é fugaz, e não pode nunca ser retido. O espectador pode refletir sobre o que viu. A arte é matéria abstrata assim como a reflexão que ela engendra.
Como restaurar uma obra de arte tão evanescente como a Arte Coreográfica em Dança Contemporânea? Brandi[17] considera que “a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física  na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro.” Sendo assim, a  restauração não é o mesmo que re-criação, mas a conservação da estrutura, levando em consideração a matéria, a forma, o local e o objeto de pesquisa que foi trabalhado. No caso da Dança Contemporânea, a matéria são as próprias dançarinas; a forma, são os movimentos; o local, é onde foi feito a concepção e por quem foi feito, levando em consideração seus afetos.
Tratando-se de dança contemporânea, em que a obra será restaurada por outras dançarinas, o objeto de pesquisa passa a ser a própria obra e não mais o objeto que foi pesquisado inicialmente. Neste caso, deixamos de lado o Vazio de Yves Klein e passamos a estudar  a obra “Autour du vide : immédiatement présent!”. Haverá uma fusão entre os afetos trazidos pelas novas dançarinas, que no caso passam a ser intérpretes de um movimento já trabalhado.
Claro que a restauração não será, jamais, tal qual a obra original. Isso não ocorre. Nem obras como as pinturas ou as esculturas conseguem, pois que não conseguimos os mesmos pigmentos, ou o mesmo material para enxertar na obra esculpida, e nem mesmo tocar empregando a mesma força que o autor empregou no momento do entalhe. Contudo,  e menos ainda no caso da restauração em Dança Contemporânea, onde a matéria traz consigo os seus afetos; não se trata de cópia de movimentos, mas de estudos de movimentos que se aproximam aos movimentos já criados anteriormente, para que a estrutura da obra não seja modificada. Requer acuidade corporal para que se restabeleça o funcionamento do produto.


Referência bibliográfica
Aristóteles, Poétique, introdução, nova tradução e anotações de Michel Magnien, Paris, Edição Le livre de poche, 2008.
Brandi, Cesari, Teoria da restauração, tradução, Beatriz Mugayar Kühl; apresentação: Giovanni Carbonara; revisão: renata Maria Parreira Cordeiro; Cotia, SP, Ateliê editorial, (1963), 2008.
Demeulenaere, Pierre, Une théorie des sentiments esthétiques, Paris, Grasset, 2001.
Gil, José, Movimento total, o corpo e a dança, tradução: Miguel Serras Pereira, Rio de Janeiro, editora Iluminuras, (1935), 2009
Lobo, Lenora e Navas, Cassia, Arte da composiçao : Teatro do Movimento, Brasilia, editora LGE, 2008.
Maine De Biran, Pierre, Mémoire sur la décomposition de la pensée, (1804), Paris Librairie philosophique J. Vrin, 2000.
Merleau-Ponty, Maurice. Le Visible et l’Invisible, suivi de notes de travail, texte établi par Claude Lefort, accompagné d’un avertissement et d’une postface, Paris, éditions Gallimard, (1979), 1997
Nietzsche, Friedrich, La naissance de la tragédie, traduit de l’allemand par Geneviève Bianqui, Paris, éditions Gallimard, collections folio/essais, impression 1987, p. 59.
Proust, Marcel À la recherche du temps perdu,– Du coté de chez Swann, Paris, édições Gallimard, coll. folio classique, dépôt légal 1988, (2005).



[1]Almeida, Marcia,  http://portalabrace.org/vicongresso/pesquisadanca/Marcia%20Almeida%20-%20As%20afeta%E7%F5es%20plasticas%20do%20corpo%20e%20o%20conhecimento%20sensive1.pdf
[2]Aristote, Poétique, introdução, nova tradução e anotações de Michel Magnien, Paris, Edição Le livre de poche, 2008.
[3] Aristote, Poétique, (1458a 21, 1458b 1 et 32 sq.), 2008.
[4] ibid, (1458b 22)
[5]Gil, José, Movimento total, o corpo e a dança, tradução: Miguel Serras Pereira, Rio de Janeiro, editora Iluminuras, (1935), 2009, p. 85
[6]Gil, 2009, p. 89.
[7]Demeulenaere, Pierre, Une théorie des sentiments esthétiques, Paris, Grasset, 2001.
[8]Almeida, Marcia, As afetações... 2010
[9] Aristote, Poétique, 2008.
[10] Lobo, Lenora e Navas, Cassia, Arte da composiçao : Teatro do Movimento, Brasilia, editora LGE, 2008.
[11] Maine De Biran, Pierre, Mémoire sur la décomposition de la pensée, (1804), Paris Librairie philosophique J. Vrin, 2000.
[12]      Nietzsche, Friedrich, La naissance de la tragédie, traduit de l’allemand par Geneviève Bianqui, Paris, éditions Gallimard, collections folio/essais, impression 1987.
[13] Em 1958, Yves Klein organisa na la galeria Iris Clert « l’exposition du Vide » (exposição do vazio) : o espaço da galeria foi esvaziado de todos os objetos, como a incarnação do vazio, do nada, necessario para a meditação e conhecido da filosofia budista.
[14] Centre George Pompidou, 25 fevereiro - 23 março 2009 ; no « Palais de Tokyo” e galeria Marie Goodman.
[15] Proust, Marcel À la recherche du temps perdu,– Du coté de chez Swann, Paris, édições Gallimard, coll. folio classique, dépôt légal 1988, (2005).
[16] Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible, suivi de notes de travail, texte établi par Claude Lefort, accompagné d’un avertissement et d’une postface, Paris, éditions Gallimard, 1997 (1979), p. 25.
[17] Brandi, Cesari, Teoria da restauração, tradução, Beatriz Mugayar Kühl; apresentação: Giovanni Carbonara; revisão: renata Maria Parreira Cordeiro; Cotia, SP, Ateliê editorial, (1963), 2008.

Marcia Almeida
Ph.D. em Estética (Filosofia da Arte)/Dança. Universidade Phantéon Sorbonne – Paris 1
IFB – Instituto Federal de Brasília
Professora – Licenciatura em Dança
Pesquisa – Arte Coreográfica/Dança Contemporânea.

Para citação: Almeida Marcia.  Discussão sobre a Arte coreográfica, a composição e restauração em Dança contemporânea. Exemplo coreográfico :  “Autour du vide : immédiatement présent!”, III Seminario e Mostra Nacional de Dança-Teatro, Caminhos da Dança no Brasil, paginas, 58 a 68, ISBN 9788572694056, editora Tribuna, 2011.






sexta-feira, 24 de junho de 2011

Reflexões sobre o trabalho corporal dos atores da Companhia Familie Flöz

 Ontem assisti uma peça de teatro no MIT, apresentado no CCBB Brasilia :

Delusio

foto apresentada no site do CCBB sem os creditos


Companhia Familie Flöz.
obra teatral criada por: Paco Gonzalez, Björn Leese, Hajo Schüler, Michael Vogel.
Interpretada por: Paco Gonzalez, Björn Leese, Jesko von den Steinen, Hajo Shüler, Sebastian Kautz.
Direção e espaço cênico: Michael Vogel
Vestuario: Eliseu R. Weide
Mascaras: Hajo Schüler
Desenho de iluminação: Reinhard Hubert
Iluminação: Emilio Valenzuela
Desenho de som: Dirk Schröder
Assistentes de Produção: Gianni Bettucci, Dana Schimidt.


Me impressionou o trabalho corporal dos atores. Sem duvida, cada personagem surge a partir de uma mascara, muito expressiva por sinal, mas que sem a expressividade corporal dos atores seria uma mascara morta. No entanto eles dão vida a cada mascara, e elas se multiplicam com a troca de perucas.

A peça se passa nos bastidores de um teatro! é fantastico a forma a qual o diretor escolhe para despertar o imaginario, dando à cêna além da imagem dos personagens que ali circulam, a possibilidade de criação por meio de sons en off, entradas e saidas dos personagens que transitam pela coxia (frente do palco) e que atuam nas peças que são “vistas” do lado de la. Isso desvela a memoria do que ja foi visto. Então o que é apresentado na cena é o que normalmente fica do lado do avesso do palco.

Inicia com um ator carregando uma mascara composta com um vestido branco, que da a ideia de um ser flutuante, ou um fantasma. A forma a qual ele manipula a cabeça desse personagem/boneco faz com que o boneco se anime de forma tal, que parece ganhar vida.

Na sequência, aproxima-se um e depois outro ator, para se apropriar corporalmente desse personagem/boneco que esta incompleto. Neste momento eles se apropriam corporalmente desse personagem/boneco. A marionete ganha vida através da manipulação de três atores. Isso sim, trata-se de corpo instrumento e apropriação corporal. é bom sublinhar que não considero e não entendo quando se fala de apropriação corporal para pessoas, pois que elas são o proprio corpo.

Bom, esses três atores se apropriam corporalmente do boneco: um manipulando a cabeça (que sustenta o “corpo”), e os outros dois, um a um “entra” no “corpo” da boneca pela manga da camisa, emprestando suas mãos, um do lado direito outro do lado esquerdo. Com essas mãos vivas, a boneca ganha vida e pode agir. Engraçado é que a partir da liberação das mãos (quando o humano desenvolve seus utensilios através dos quais ele passa a ter as mãos livres), é que ele pode se libertar para criar outras coisas. E no caso, quando o boneco vai se constituindo corporalmente, as mãos é a ultima a entrar no corpo do boneco dando-lhe liberdade de ação.

E ai começam as ações. O trabalho corporal dos atores é fantastico! durante toda a peça, o som que surge é em off, não ha palavaras pronunciadas pelos atores, somente expressividade corporal, de uma delicadeza que não remete à mimica caricata. Ao contrario as fibras musculares, os ossos se ajeitam de forma sutil para receber a mascara que determina o tonus muscular, a forma de pisar, a postura para apresentar o personagem que corresponde à mascara, uma forma de capacete que cobre toda a cabeça.

Em dança ja é conhecido o trabalho necessario que o dançarino tem antes de pisar no palco. é preciso ter acuidade corporal par encenar. Embora atualmente no Brasil, o que venho percebendo, baseado em algumas peças de dança que assisti depois do meu longo periodo em Paris, é que os “dançarinos” se transformam da noite para o dia em “interpretes-criadores” ou “performer”, nome que alias acho péssimo para designar o dançarino-criador da contemporânea. Trato deste assunto em alguns textos que publicarei futuramente, a medida que for traduzindo as 406 paginas da minha tese de doutorado, escrita em francês.

Mas o que eu quero sublinhar é a acuidade corporal apresentada por esses atores da companhia Familie Flöz. E exatamente é essa acuidade que possibilita o sonho, pois que eles não emitem nenhuma palavra, expressam-se apenas corporalmente, sem que essa expressão seja caricatural. São expressões de postura corporal e movimentos codificados, mas muito expressivos. Com isso quero dizer que a dança contemporânea, por sua vez, vem perdendo esse quesito da expressividade corporal, quando insiste em tratar o corpo de forma Platônica, ou seja, quando tentam negar a corporeidade para não se identificar com carne, mas como seres intelectuais.. como se o intelecto não fosse integrante corporal! A dança contemporânea, perde por querer exprimir apenas o corpo deprimido, sofrido.

Vamos la gente, vamos dançar! 

quinta-feira, 23 de junho de 2011

As afetações plásticas do corpo e o conhecimento sensível

Resumo: O nascimento inaugura o processo da pessoa numa sociedade. Antes que o recém nascido receba um nome ou as marcas que lhe autorizem a pertencer a certo grupo, o nascimento não é ainda socializado. Só a morte dissolve a forma do corpo. Ha um trajeto a percorrer entre o nascimento e a morte pelo qual o “ego” descrito por Maine de Biran, se constitui ao longo da existência. Assim o corpo não é um organismo acabado, uma massa de músculos, ossos e nervos na dimensão proposta pela anatomia, sobre o qual o ambiente não pode agir. A pessoa é o resultado da afetação entre ela e o meio que a faz participante de uma determinada sociedade. Vou discutir aqui a plasticidade que se da à pessoa através do sensível, resultado do afeto da pessoa com o meio ambiente e seu conhecimento sensível.
Palavras-chave: arte coreográfica, pesquisa em dança contemporânea, conhecimento sensível.

A presença do humano se realiza a partir da sua corporeidade. Ao corpo biológico se agrega os afetos, fator que o faz ser percebido como exemplar único. Philippe Perro[1] , comenta que através da epiderme, camada mais superficial do corpo, que a pessoa desvela o afeto trocado com o meio em que está esta inserida. Acrescenta que por meio deste afeto se revela, o gosto de cada sociedade. Isto quer dizer que o meio ambiente afeta tão profundamente o corpo biológico que interfere em sua morfologia. Existem culturas que tem como modelo o corpo gordo. No Brasil é inadmissível ter excesso de peso, ser feio e, sobretudo velho

O nascimento inaugura o processo da pessoa na sociedade. Antes que o recém-nascido receba um nome e as marcas que lhe autorizem pertencer a uma sociedade, o nascimento não é socializado. A morte marca o seu desaparecimento. Assim o corpo não é um organismo acabado, não é apenas uma massa composta por músculos, ossos e nervos, sobre a qual o ambiente não pode agir. A pessoa é o resultado da afeição entre ela e o meio. Isso a faz participante de uma determinada sociedade, como propõe Michel Henry[2]  ao dizer que a constituição do mundo se confunde com a apreensão do mundo, que a pessoa é a revelação do mundo, que a pessoa é a revelação do mesmo. Dessa forma, ha um trajeto que o humano percorre entre o nascimento e a morte, através do qual o ego se forma. Em sua teoria, Maine de Biran considera o ego como essa camada que desvela o humano como pessoa. Assim o ego é o resultado entre afetar, afeiçoar e ser afetado.  É bom sublinhar que Maine de Biran considera que para afetar ou ser afetado é preciso se afeiçoar.
Com isso quero dizer que existe uma espécie de comunhão ou acordo entre o humano e o meio ambiente, mas estes não se fundem como acontece com o corpo e ego. Isto quer dizer que o ego não se localiza nem na exterioridade ou interioridade corporal: o ego é o próprio corpo. A pessoa se compõe de todas as suas experiências vividas. Considero que a pessoa se forma por coisas que se ajuntam à carne no percurso de vida, como propõe Maine de Biran e não como o corpo dual sugerido por Platão: um lado um ser que pensa e de outro que age.
Em sua filosofia, Platão propõe o corpo como um peso para o espírito. Antes de se dar à morte, Sócrates faz um elogio à superioridade da alma: «[…] nous serons purs, étant séparés de cette chose insensée qu’est le corps[3]». Mas assim que Sócrates morre, perde sua capacidade de livre atuação no mundo, pois é preciso corpos, presentes e palpáveis, para agir diretamente sobre o mundo.
O pensamento é também movimento corporal. Isto quer dizer que quando realizo uma reflexão estou agindo, da mesma maneira quando me movo. Não importa qual seja o movimento, reflexão: quando danço ou leio um livro, ou pura ação: quando transporto um objeto pesado. Para ambas as situações é preciso um esforço físico. Este esforço é realizado pela pessoa: sujeito visível no mundo.
Assim o ego e a fisicalidade compõem a pessoa, quer dizer, a pessoa é composta pelo conjunto do corpo funcional e seus afetos. Nesta proposta não existe distinção entre corpo e ego. A expressão corporal pertence à própria pessoa. Não ha nada que se interpõe entre os movimentos do corpo e do ego. Isto quer dizer que o corpo não é um instrumento da expressão do ego, os movimentos não estão a serviço de alguma coisa que não seja sua própria expressão. Não existe intermediário entre o ego e a ação, o corpo não é um interprete da alma, seus movimentos são provocados pelo corpo, ele mesmo. .
Pensar na possibilidade de um corpo instrumento me remete sempre à imagem de instrumentos: utensílios para os humanos, como uma faca, ou mesmo um instrumento musical, um violoncelo, sem o qual o musicista não pode emitir vibrações sonoras e se exprimir através do som quando não toca as cordas. Neste caso, o musicista não existe sem o seu instrumento e o violoncelo é o instrumento mudo. O corpo nunca será um instrumento de expressão do dançarino porque ele é o corpo. Eu não sou objeto de expressão de mim mesma: me expresso simplesmente.
Os corpos-instrumentos seriam como marionetes. É preciso alguém que aciona e controla uma sequência de movimentos, pois que o corpo-marionete não tem jamais autonomia de ação corporal. Para quem considera o corpo como instrumento de ação do espírito eu coloco a questão: quem deve ser condenado quando um crime acontece, pois que o corpo é instrumento do espírito e não tem autonomia de ação? Eu considero que o corpo que pensa é o mesmo que determina as ações. Não existe intervalo entre pensamento e ação. A pessoa pensa e age; o que eu penso é intrínseco ao que sou. Eu sou uma forma plástica, e são vários os componentes que me modelam.
Aqui é preciso sublinhar que eu considero a noção de forma como propõe Peirre Demeulenaere[4], aquela que é plástica, maleável que se adapta ao ambiente. Isto difere da idéia e forma que resulta, por exemplo, de aparência esperada por comportamentos que são mais delimitados e imóveis, como uma forma dada a um bolo que é cozido dentro de uma forma. Não ha plasticidade nesta forma, a não ser que eu decida cortar e redefinir a forma desse bolo, mas ele se tornara ainda uma forma precisa e imutável. Neste caso, a forma é uma definição precisa de alguma coisa que é feita dentro de uma moldagem. Para modificá-la é preciso uma ação direta e externa sobre a coisa. No entanto a forma proposta por Demeulenaere permite a plasticidade segundo os afetos.
Assim, a pessoa esta presente no mundo e conhece este mundo por seus movimentos. Ela se afeiçoa ao mundo que lhe afeta e em consequencia a pessoa afeta seu meio. Acontecem ligações afetivas que se tecem entre o mundo e a pessoa. Pois a pessoa participa intimamente em seu meio ambiente.
Existe um componente que esta além do conjunto anatômico. Estas coisas, sutis, imensuráveis que se somam à carne. São coisas que a ciência desconsidera. Portanto são perceptíveis, se ajuntam aos poucos ao longo do percurso da vida da pessoa. Essas coisas sutis que afetam a carne diferenciam uma pessoa da outra. Isto as faz pessoas-únicas mesmo apresentando componentes semelhantes à de outros.
Ao corpo se ajuntam os sentimentos, dessa maneira o ato de sentir é constituído pelo movimento. Para Maine de Biran[5], a sensação é um ato subjetivo, conhecido pelo corpo através do esforço de sentir, de direcionar a atenção ao ato de sentir. Porque sentir não é a mesma coisa que ter uma sensação. Os sentidos nos fornecem sensações. A interseção entre o ato de sentir e o odor de um perfume provoca uma sensação constituída pelo movimento subjetivo do odorato. O perfume nos revela historias invisíveis. Ele tem um poder de nos desvelar coisas guardadas no fundo da memória. Os odores trazem em si secredos intimos, sublinhado por Proust ao descrever o quarto da tia: « [Il] nous enchantent des mille odeurs qu’y dégagent les vertus, la sagesse, les habitudes, toute une vie secrète, invisible, surabondante et morale que l’atmosphère y tient en suspens […][6] ». O odor nos traz a presença física de coisas que não estão mais presente.
A pessoa apreende o meio ambiente por intermédio de estímulos dos sentidos que agem simultaneamente. As sensações visuais, olfativas, auditiveis, táteis e do equilíbrio colocam a pessoa em contato com o espaço. Cada sentido tem uma especialização: quando alguém sente um perfume é o olfato que age. Mas ele não age só, os sentidos formam uma unidade, mesmo sendo mecanismo distinto para cada um. A sensibilidade corporal coloca a pessoa em contato com o ambiente. A pele marca a fronteira entre a carne e o meio, e a porosidade da pela permite as trocas além do limite cutâneo.
A pessoa está em contato com a luz da lua, do sol, com o frio, a montanha, o mar, as pessoas que estão ao redor, as paisagens arquiteturais. Enfim, as pessoas estão em contato direto com o meio ao qual estão inseridos e consequentemente estes espaços serão familiares aos que neles habitam. É através da corporeidade que as pessoas apreendem o espaço. As qualidades do meio ambiente afetam a carne e lhe dá o conhecimento sensível, conhecimento impreciso, pouco objetivo, divergente da precisão que requer a ciência.
Michel Henry[7] considera a memória como fenômeno corporal, se encontra em qualquer atividade sensorial como elemento constitutivo deste. Isto quer dizer que pela memória o corpo constitui seu percurso, soma suas experiências e forma a pessoa. Segundo Dewey[8] , a experiência é o resultado, o sinal e a recompensa da interseção ente o organismo e o meio ambiente que; assim que se conclui se transforma por meio da interação. Eu toco o mundo através do conjunto de sentidos e a recíproca é verdadeira. Assim a pessoa registra em sua carne as experiências que dão a forma a qual ela se manifesta no mundo. A experiência sensível não é descritível nem objetiva. E é esse o abismo de rosas que existe entre ciência e arte.

Bibliografia
Demeulenaere, Pierre Une théorie des sentiments esthétiques, Paris, Grasset, 2001.
Dewey, John, III L’art comme expérience, introdução por Richard Shusterman, postface de Stewart Buettner, Tradução do inglês (USA) no quadro do GRAPPHIC e do CICADA por Jean-Pierre Cometti, Christophe Domino, Fabienne Gaspari, Catherine Mari, Nancy Murzilli, Claude Pichevin, Jean Piwnica e Gilles Tiberghien, dirigido por Jean-Pierre Cometti, publicação de l’Université de Pau, edição Farrago, 2005.
Maine De Biran, Pierre, Mémoire sur la décomposition de la pensée, (1804), Paris Librairie phiplosophique J. Vrin, 2000, deuxième partie; chap. 1.

Michel Henry, Philosophie et phénoménologie du corps (1965), Paris, PUF, Épiméthée, 2006.

Perrot, Philippe, Le corps féminin, XVIIIe-XIXe siècle, ( Le travail des apparences), Paris éditions du Seuil, 1984
,
Platon, Phédon, Traduction nouvelle, introduction et notes par Monique Dixsaut, Publié avec le concours du Centre national des Lettres. Paris, GF Flammarion, 1991.

Proust, Marcel, À la recherche temps perdu – Du coté de chez Swann, Paris, Gallimard, Folio classique, 2005.




[1] Philippe, Perrot, Le corps féminin, XVIIIe-XIXe siècle, ( Le travail des apparences), Paris éditions du Seuil, 1984, pp. 61, 62.
[2] Michel Henry, Philosophie et phénoménologie du corps (1965), Paris, PUF, Épiméthée, 2006, p. 58.
[3] Platon, Phédon, Traduction nouvelle, introduction et notes par Monique Dixsaut, Publié avec le concours du Centre national des Lettres. Paris, GF Flammarion, 1991, p, 217. “...nos seremos puros, estando separados desta coisa insensata que é o corpo”, tradução feita por mim mesma.
[4] Pierre Demeulenaere, Une théorie des sentiments esthétiques, Paris, Grasset, 2001. p. 25.
[5] Maine De Biran, Pierre, Mémoire sur la décomposition de la pensée, (1804), Paris Librairie phiplosophique J. Vrin, 2000, deuxième partie; chap. 1
[6] Proust, Marcel, À la recherche temps perdu – Du coté de chez Swann, Paris, Gallimard, Folio classique, 2005, p. 49. (ele nos encanta de mil odores que dele exalam as virtudes, a sabedoria, os habitos e toda uma vida moral que a atmosfera guarda em suspenso),traduzido por mim mesma.
[7] Michel Henry, Philosophie et phénoménologie du corps, op. cit, p.113.
[8] Dewey, John, III L’art comme expérience, op. cit., p. 43.




Marcia Almeida
Professora da Licenciatura em Dança do Instituto Federal de Brasília,
Ph. D em Estética (Filosofia da Arte). Dança, Panthéon Sorbonne Paris 1
Coordenadora do grupo de pesquisa em Arte Coreográfica – Dança contemporânea IFB/CNPq
Dançarina, coreógrafa, pesquisadora, professora.

este texto esta publicado no VI Congresso da ABRACE. ISSN: 2176-9516 
Referência para citação:
http://portalabrace.org/vicongresso/pesquisadanca/Marcia%20Almeida%20-%20As%20afeta%E7%F5es%20plasticas%20do%20corpo%20e%20o%20conhecimento%20sensive1.pdf